Haonê Thinar: "Quero que pessoas com deficiência, especialmente amputadas, se vejam representadas na TV"


No ar como Pamela em “Dona de Mim”, atriz conversou com Glamour sobre carreira, preconceito e representatividade Aos 32 anos, Haonê Thinar vive a concretização de um sonho. A atriz estreia na televisão como a batalhadora Pamela, uma das melhores amigas da protagonista Leo, interpretada por Clara Moneke, em “Dona de Mim”. Natural de São Paulo, Haonê encontrou na arte um refúgio para enfrentar uma fase difícil da infância. Aos 8 anos, precisou amputar uma das pernas devido a um tumor no fêmur. “Estar em rede nacional como uma mulher com deficiência visível e assumida é um marco. Espero ajudar a normalizar a presença de pessoas com deficiência na sociedade, mostrando que elas trabalham, se relacionam e vivem plenamente”, afirma, em entrevista exclusiva à Glamour.
Foi nos palcos que Haonê chamou a atenção da autora Rosane Svartman. Ao assistir à sua atuação na peça “Meu Corpo Está Aqui”, de Julia Spadaccini e Clara Kutner — que trata de amor e sexualidade da pessoa com deficiência —, Rosane se encantou com o trabalho da atriz. “Eu já tinha deixado minha vida em São Paulo para me dedicar ao teatro, e essa oportunidade foi uma surpresa maravilhosa”, recorda.
O caminho até aqui, no entanto, esteve longe de ser fácil. Haonê enfrentou inúmeros preconceitos e obstáculos. “Ser uma mulher com deficiência no meio artístico é realmente uma raridade, mas espero que isso mude. Encontrei todas as barreiras possíveis, todas as portas estavam fechadas para mim. Fui me entender como mulher preta, periférica e com deficiência mais velha. Superar tudo isso foi com o pé na porta, mostrando meu talento independente da deficiência”, dispara.
Desde pequena, Haonê revela a força de uma verdadeira guerreira. Durante as sessões de quimioterapia no hospital, ela se vestia de bailarina, usava maquiagem e enchia os braços de pulseiras, espalhando alegria ao seu redor. Quando recebeu a notícia da amputação, foi na sua mãe que encontrou o maior apoio e coragem para seguir em frente. “Receber a notícia foi difícil, mas eu era uma criança e não entendia a gravidade. Eu disse a ela para autorizar a amputação, pois preferia perder a perna a perder a vida.”
Na adolescência encarou mais desafios. “Eu era muito zoada, me chamavam de saci, um termo pejorativo para pessoas amputadas, especialmente pretas. Sofri muito preconceito, chorava todos os dias”, desabafa. Aos poucos, Haonê começou a se amar. “Foi um processo que precisou ser de dentro para fora e sozinha. Meu pai, que nunca me incentivou muito, disse que eu precisava reagir. Nesse dia, decidi me aceitar e não me importar com o que as pessoas diziam”, lembra.
Hoje, casada e mãe de dois filhos, a atriz reconhece que ainda há um longo caminho a percorrer, mas sonha com o dia em que a sociedade enxergará o corpo com deficiência de forma natural e sem preconceitos. “As pessoas precisam entender que temos a mesma capacidade de qualquer outra pessoa sem deficiência. Espero que a sociedade seja menos capacitista e que, quanto mais estivermos no audiovisual, em revistas e no teatro, as pessoas nos vejam de forma diferente
Confira o bate-papo completo onde Haonê apresenta Pamela, fala do amor pela arte, adianta novos projetos e ressalta a importância da representatividade.
Você está vivendo um momento muito especial com a novela “Dona de Mim”. Como surgiu essa oportunidade?
Sim, estou vivendo uma grande oportunidade com ‘Dona de Mim’. Essa chance surgiu quando a Rosane me assistiu no teatro, onde eu estava em cartaz com a peça ‘Meu Corpo Está Aqui,’ de Julia Spadaccini e Clara Kutner, que aborda amor e sexualidade da pessoa com deficiência. Rosane assistiu a uma das primeiras sessões no Rio e gostou muito do meu trabalho. Eu já tinha deixado minha vida em São Paulo para me dedicar ao teatro, e essa oportunidade foi uma surpresa maravilhosa.
Haonê Thinar
Globo/ Manoella Mello
Qual o peso e a importância de ocupar esse espaço numa novela em rede nacional? Que tipo de impacto você espera gerar com essa representatividade na TV?
É um peso enorme, mas no bom sentido, e de suma importância. Estar em rede nacional como uma mulher com deficiência, com uma deficiência visível e assumida, é um marco. Espero ajudar a normalizar a presença de pessoas com deficiência na sociedade, mostrando que elas trabalham, se relacionam e vivem plenamente, é o impacto que quero gerar. Quero que pessoas com deficiência, especialmente amputadas, se vejam representadas na TV, algo que eu nunca tive. Isso me deixa imensamente feliz.
E como é a Pamela? Ela tem algo em comum com você?
A Pamela tem algumas semelhanças comigo, mas não é muito parecida. Ela é sensata, calma e apaziguadora. Sua amizade com as amigas é algo que temos em comum, pois sou muito amiga das minhas amigas. Pamela é muito vaidosa e usa muitos acessórios, enquanto meu estilo é mais street e despojado. Sou vaidosa, mas não gosto muito de acessórios ou roupas muito femininas, ao contrário da Pamela. A vivência de ser uma pessoa com deficiência é algo que trago para a personagem, deixando tudo muito natural.
Como foi a construção do figurino e beleza da personagem?
A construção do figurino e da beleza da personagem já veio praticamente pronta. Mudei o cabelo para dreads, algo que nunca tinha feito, mas estava louca para experimentar. Amei todos os figurinos sugeridos, embora não os use no meu dia a dia. Eles me deixaram mais jovem e menina. Não sugeri muitas mudanças, apenas alguns croppeds, pois já acho perfeita a escolha do figurino, cabelo e maquiagem para a Pamela.
A sua história é realmente inspiradora. Como foi para você, ainda tão nova, lidar com o diagnóstico de câncer e, depois, com a amputação da perna aos 8 anos?
Para mim, foi relativamente fácil lidar com o diagnóstico de câncer, pois eu era uma criança e não entendia a gravidade da doença. No hospital, durante a primeira quimioterapia, foi dolorido, mas depois me acostumei com a rotina. Eu me fantasiava de bailarina, carimbava a careca com os carimbos dos médicos, passava glitter, me maquiava e usava muitas pulseiras. Receber a notícia foi difícil, mas eu era uma criança e não entendia a gravidade. Minha mãe foi fundamental, me ajudando a entender e a encontrar força. Eu disse a ela para autorizar a amputação, pois preferia perder a perna a perder a vida. Minha mãe me ajudou a amadurecer e a encarar a doença. Sou grata por ter passado por isso, pois me tornou quem sou hoje.
Haonê Thinar
Globo/ Manoella Mello
Quais foram os principais desafios que você enfrentou na infância e adolescência por conta da deficiência?
Os principais desafios foram o capacitismo e a falta de conhecimento das pessoas. Eu era muito zoada, me chamavam de saci, um termo pejorativo para pessoas amputadas, especialmente pretas. Sofri muito preconceito na adolescência, chorava todos os dias. A adolescência é um período cruel para qualquer pessoa. Adolescente não tem medida para zoeira. Sofri muito, foi a parte da minha vida que mais sofri. Não comecei a me amar logo de cara, foi um processo que precisou ser de dentro para fora e sozinho. Meu pai, que nunca me incentivou muito, disse que eu precisava reagir. Nesse dia, decidi me aceitar e não me importar com o que as pessoas diziam.
Em que momento a arte entrou na sua vida?
A arte sempre esteve na minha vida. Desde os cinco anos, já manifestava vontade de ser modelo. Aos 16 anos, comecei a trabalhar em um escritório, onde a pessoa do RH fazia teatro e me chamou para participar. Entrei no teatro e me apaixonei. Meu irmão, que hoje cuida da minha carreira, disse que eu atuava muito bem. Já fazia desfiles e fotos como modelo desde os 15 anos. Meu primeiro desfile foi aos cinco anos, na Cohab Teotônio Vilela, onde morava, com o corpo pintado. A arte sempre esteve presente na minha vida, é algo muito meu.
Ser uma mulher PCD no meio artístico ainda é uma raridade. Quais barreiras você encontrou nesse caminho e como conseguiu superá-las?
Ser uma mulher com deficiência no meio artístico é realmente uma raridade, mas espero que isso mude. Encontrei todas as barreiras possíveis, todas as portas estavam fechadas para mim. Fui me entender como mulher preta, periférica e com deficiência mais velha. Superar tudo isso foi com o pé na porta, mostrando meu talento independente da deficiência. As pessoas precisam entender que a deficiência não tira a capacidade da pessoa de exercer algo.
Haonê Thinar na peça “Meu Corpo Está Aqui”
Reprodução/Instagram
Você foi mãe solo aos 25 anos. Como foi viver esse momento — com tantos desafios, mas também com tantas descobertas?
Fui mãe solo aos 25 anos, estava no auge da minha carreira como dançarina. Não tive apoio do genitor, exceto pela pensão obrigatória. Tive muito apoio da minha mãe, que parou de trabalhar para cuidar de mim, do meu irmão, da minha irmã e do meu pai, que ajudou na criação do meu filho. Hoje, meu marido Lucas me ajuda com tudo. Foi um período muito difícil, tive muitas crises de ansiedade e não aceitava a gravidez. Com o nascimento do meu filho, renasci e ele me deu força para correr atrás dos meus sonhos.
Agora você tem uma menina (Lavínia) de poucos meses… Como tem sido equilibrar maternidade e trabalho na TV?
Hoje tenho uma filha de quatro meses e conciliar tudo isso não é fácil. Meu marido, Lucas, também é artista e tem horários flexíveis. Quando está muito pesado, chamamos minha irmã para ficar com as crianças. Lavínia toma fórmula desde muito novinha, pois uso um medicamento que interfere no leite materno. Tenho uma rede de apoio muito forte, incluindo minha mãe, meu irmão e minha irmã.
Li um desabafo seu sobre os olhares que recebia na rua durante a gravidez. Como esses momentos te afetaram? E o que você faz para se blindar emocionalmente dessas reações?
Durante a gravidez, os olhares das pessoas eram carregados de estigma. Olhavam para mim e para meu marido como se ele fosse um monstro por me engravidar. As pessoas têm a tendência de olhar para a pessoa com deficiência com dó e capacitismo, achando que não podemos nos relacionar, trabalhar ou cuidar dos nossos filhos. Isso me afetou muito, mas tento abstrair e fingir que nada está acontecendo. Não é fácil blindar-se emocionalmente, mas penso que sou uma pessoa extraordinária e que as pessoas podem estar perdendo a chance de conhecer alguém incrível por terem um olhar de julgamento.
Que mensagem você deixaria para mulheres PCD que estão passando por momentos difíceis ou que têm o sonho de atuar, como você?
A mensagem que deixo para as mulheres com deficiência que têm o sonho de atuar é: teremos altos e baixos, muitos nãos e portas fechadas. Mas se você acredita nisso e acredita que é capaz, lute e corra atrás. Ninguém vai na sua casa te chamar para trabalhar, precisamos correr atrás como qualquer outra pessoa. Não desista dos seus sonhos. Pode parecer clichê, mas foguete não dá ré, é só para frente. Não desista, todo mundo é capaz de chegar onde quer.
Que tipo de mudança de olhar você gostaria que acontecesse em relação à inclusão e à representatividade nas artes e na sociedade como um todo?
A mudança que gostaria de ver em relação à inclusão e a representatividade nas artes, principalmente no audiovisual, é a normalização do corpo com deficiência. Colocar atores em papéis do cotidiano, como advogados, médicos, professores, amigos, pessoas que trabalham e pegam condução. Mostrar que a vida da pessoa com deficiência não acabou e que ela pode fazer tudo o que quer, com outras possibilidades. As pessoas precisam entender que temos a mesma capacidade de qualquer outra pessoa sem deficiência. Espero que a sociedade seja menos capacitista e que, quanto mais estivermos no audiovisual, em revistas e no teatro, as pessoas nos vejam de forma diferente.
Tem outros projetos a caminho?
Tenho alguns projetos em andamento, mas ainda não estão concretizados. Quero contar minha história mais detalhadamente no teatro, talvez com um monólogo ou com outros atores com deficiência. Tem o filme 90 Decibéis, que fiz com Benedita Casé e Julia Spadaccini, que ainda vai estrear. É um filme com 80% a 90% dos atores com deficiência, produzido pela Globo. Espero que todos assistam e que isso ajude a mudar a visão das pessoas em relação a nós, pessoas com deficiência.
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Fonte: Glamour

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